Na segunda metade do século XX, as descobertas em torno do Sistema Endocanabinoide (SEC) impulsionaram uma série de estudos sobre a Cannabis enquanto moduladora desse sistema vital, contextualizando as propriedades terapêuticas da planta em diversas situações clínicas. Desde então, as pesquisas científicas em torno da Medicina Endocanabinoide vêm se consolidando em várias partes do mundo.
No Brasil, embora o assunto ainda esteja cercado de desentendimentos e estigmas, a Medicina Endocanabinoide ganhou força com o avanço da legislação a respeito.
Em 2020, entrou em vigor a Resolução 327 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que orienta sobre o processo de regularização de produtos de Cannabis para fins medicinais.
Nesse contexto, muitos médicos e outros profissionais da área da saúde viram a necessidade de se atualizar sobre o tema. Afinal, os derivados canabinoides demonstram ser uma ferramenta terapêutica indispensável na Medicina do Futuro.
Pensando nisso, preparamos este conteúdo que explica o que é a Medicina Endocanabinoide, quais oportunidades ela traz e quais são suas principais aplicações. Neste artigo, você verá:
- O que é a Medicina Endocanabinoide?
- Oportunidades da Medicina Endocanabinoide
- Sistema Endocanabinoide
- Principais aplicações nas especialidades médicas
Sistema Endocanabinoide: Histórico
A popularidade da maconha como uma droga recreativa deve-se à sua capacidade de alterar a percepção sensorial e causar euforia. No entanto, a capacidade dos extratos da planta de cânhamo (Cannabis sativa) de causar uma variedade de efeitos medicinais não relacionados às suas propriedades psicoativas havia sido reconhecida já no terceiro milênio a.C., quando textos chineses descreveram sua utilidade no alívio da dor e cólicas.
Mas até as últimas décadas, a pesquisa sobre maconha era um campo bastante esotérico, de interesse para um pequeno número de cientistas. O primeiro avanço importante foi a identificação da estrutura química correta do tetrahidrocanabinol (THC), o principal ingrediente psicoativo da maconha, em 1964.
A partir de então, os estudos dos efeitos biológicos do THC e seus análogos sintéticos revelaram sinais de interações em nosso organismo, com receptores canabinoides específicos.
Com a evolução dos estudos, foi possível identificar que, para estimular esses receptores, nossos corpos produzem moléculas que têm uma semelhança estrutural com as encontradas na planta cannabis.
O primeiro endocanabinoide descoberto foi nomeado anandamida em homenagem à palavra em sânscrito ananda para felicidade.
Como Funciona o Sistema Endocanabinoide
O SECB – Sistema Endocanabinoide, compreende uma vasta rede de sinais químicos e receptores celulares que interagem entre si em nosso cérebro e corpo. Sua estrutura envolve três componentes principais:
- Substâncias endocanabinoides
- Receptores
- Enzimas responsáveis pela síntese e degradação dos endocanabinoides
Substâncias Endocanabinoides
Também chamados canabinoides endógenos, estas substâncias são moléculas produzidas pelo nosso próprio corpo. Elas receberam este nome, pois sua estrutura é semelhante à dos canabinoides (extraídos da planta cannabis).
Até o momento, os endocanabinoides já descobertos e melhor caracterizados são:
- anandamida (AEA)
- 2-arachidonoylglyerol (2-AG)
Nosso organismo os produz conforme necessário, tornando difícil saber quais são os níveis típicos para cada um.
Receptores Endocanabinoides
Estes receptores são encontrados em todo o nosso corpo. Eles são ativados quando as substâncias endocanabinoides se ligam a eles para sinalizar que o SECB precisa realizar.
Existem dois receptores endocanabinoides principais:
- Receptores CB1: encontrados principalmente no sistema nervoso central. Superam muitos dos outros tipos de receptores no cérebro. Eles controlam os níveis e atividade da maioria dos outros neurotransmissores, regulando a atividade de qualquer sistema que precise ser ajustado, seja fome, temperatura ou alerta.
- Receptores CB2: encontrados principalmente no sistema nervoso periférico e células imunes. Sua ação é fundamental para controlar nosso funcionamento imunológico, modulação da inflamação, contração e dor.
As Substâncias Endocanabinoides podem se ligar a qualquer receptor do SECB. Os efeitos que resultam dessa ligação dependem de onde o receptor está localizado e a qual substância ele se liga.
Além do CB1 e CB2, evidências farmacológicas vem se acumulando ao longo dos anos para apoiar a existência de um ou mais receptores adicionais dentro do SECB.
Enzimas
Ao contrário dos neurotransmissores clássicos, os endocanabinoides não são armazenados em compartimentos dentro de nossas células. Em vez disso, são produzidos “sob demanda” por enzimas e liberados dos neurônios imediatamente.
Após sua função de sinalização, a substância é recaptada por um transportador para ser degradada por outras enzimas.
A compreensão desse mecanismo enzimático envolvido no metabolismo endocanabinoide oferece oportunidades interessantes para o desenvolvimento de medicamentos direcionados.
Interações do Sistema Endocanabinoide
O Tetrahidrocanabinol (THC) é um dos principais canabinoides encontrados na cannabis. É o composto com efeitos psicoativos. Uma vez em seu corpo, o THC interage com o SECB ligando-se aos receptores (tanto os CB1, quanto os CB2), assim como os endocanabinoides.
Isso permite que ele tenha uma gama de efeitos em seu corpo e mente. Por exemplo, o THC pode ajudar a reduzir a dor e estimular o apetite. Mas também pode causar paranoia e ansiedade, em alguns casos.
Por outro lado, o canabidiol ou CBD, outro canabinoide importante encontrado na cannabis não interage com os receptores CB1 ou CB2. A comunidade científica ainda não compreendeu totalmente como o CBD interage com o SECB. Algumas possibilidades sugeridas são a inibição da degradação da anandamida ou suas propriedades antioxidantes.
Embora os detalhes de como ele funciona ainda estejam em debate, pesquisas sugerem que o CBD pode ajudar com dor, náuseas e outros sintomas associados a múltiplas condições.
Funções do SECB e Perspectivas para o Desenvolvimento de Tratamentos
Segundo a Harvard Health Publishing, a comunidade científica ainda está tentando entender completamente o funcionamento do sistema endocanabinoide, mas até o momento já sabemos que ele é fundamental para quase todos os aspectos do nosso funcionamento, regulando e controlando muitas de nossas funções corporais, como:
- Aprendizado e memória
- Processamento emocional
- Sono
- Controle de temperatura
- Controle da dor
- Respostas inflamatórias e imunes
- Apetite e digestão
- Metabolismo.
Todas essas funções contribuem para a homeostase, ou seja, a estabilidade do ambiente interno em nosso corpo.
Hoje, acreditamos que a manutenção da homeostase seja o papel principal do SECB. Por exemplo, se uma força externa, como uma lesão ou infecção, desequilibrar a homeostase do seu corpo, o SECB entra em ação para ajudar seu corpo a retornar ao funcionamento ideal.
Neste sentido, a compreensão do sistema endocanabinoide pode levar ao desenvolvimento de medicamentos que ativem ou que bloqueiem a ação do SECB.
Por exemplo, como os endocanabinoides e o receptor CB1 estão presentes em altas concentrações em áreas do hipotálamo envolvidas no controle alimentar, podemos produzir medicamentos para alívio de anorexia e náuseas em pacientes com doenças associadas a perda de peso involuntária e também medicamentos que atuem na modulação do apetite.
O estudo do SECB foi inicialmente focado em tentativas de entender a ação de uma planta considerada droga ilegal sobre nosso organismo. Mas, conforme as pesquisas foram se desenvolvendo, encontramos um sistema surpreendente, pelo qual nosso corpo aprende, sente, se motiva e se mantem em equilíbrio.
Estamos no início de uma fase de descobertas em relação ao SECB e do desenvolvimento de novos medicamentos que podem ajudar a aliviar diversos sofrimentos.
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